quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Da antropofagia cultural aos radicalismos atuais

Em que estamos nos tornando, com a loucura dessa "guerra santa" instaurada sob a designação de "apropriação cultural"?
- Houve "apropriação cultural" quando viraram moda "ser nordestino" (graças à turma do Ceará e Paraíba - Ednardo, Belchior, Fagner, Elba Ramalho - que se beneficiou do caminho aberto pelo patrono Luiz Lua Gonzaga, que por sua vez abriu pro Patativa do Assaré, Canhoto da Paraiba, Dominguinhos, Sivuca e Glorinha Gadelha, Elomar e tantos, até Cordel do Fogo Encantado...), "ser baiano" (idem, à turma dos de lá - começando com o grande Dorival Caymmi e adquirindo proporções exponenciais com Bethânia, Gal, Gil, Caetano, Novos Baianos e, faturando nessa onda, a Simone e os mais recentes) e "ser do santo" (candomblé e macumba - Joãozinho da Goméia, Odé Coiaci, a própria Bethânia etc.), lá pelos idos dos anos da década de 1970 e 1980...

Passada a onda, ninguém morreu... Nordestinos, baianos, soteropolitanos ou adeptos dos cultos afro, nenhum desses foi expropriado em seu processo identitário. De meu ponto de vista (e sempre o é), apesar de reconhecer o modismo, vejo como tendo havido ganhos bastante positivos - maior conhecimento das culturas desses povos e expressões religiosas é um deles; outro tão ou mais importante foi a relativa valorização dessas identidades e culturas. O mesmo temos verificado com a capoeira, o samba, a feijoada, o partido alto, o jongo e tantos outros exemplos nessa nossa nação benfazejamente caleidoscópica e continental.

Vejo como muito nefasto tantos purismos, radicalismos, encapsulamentos - porque antagoniza ao invés de aproximar, alimenta e faz fermentar ódios e ressentimentos ao invés de celebrar toda a riqueza de nossa vasta diversidade.

Se uma branca não pode usar um simples pano enrolado na cabeça porque denotaria uma marca da cultura africana e violaria (desqualificando) o processo de autoafirmação das mulheres negras, vamos fazer o que com o costume das mulheres do campo (muitas do norte e nordeste) de também cobrirem os seus cabelos com panos?

- O que e quem vai estabelecer o que é  "turbante africano" do que é turbante indiano, do que é turbante das mulheres das populações rurais desse imenso Brasil?

Brancos não poderão mais fazer capoeira (nem no Brasil nem em parte alguma do mundo), igualmente não poderão aprender a sambar ou a tocar o samba??? Homens não poderão mais reivindicar o legítimo direito ao uso de saias? As mulheres serão outra vez proibidas de usar calças compridas? Homossexuais não poderão mais se casar e lutar pelo reconhecimento da legitimidade de suas famílias? Brancos e brancas das camadas médias urbanas não poderão mais se tatuar, nem furar partes de seus corpos para neles colocar adereços (os tais piercings)?

Chegarmos ao ponto de uma intelectual branca sentir-se na obrigação moral (solidariedade feminista) de doar a uma sua amiga negra uma bata africana que usava e que lhe era de grande estima por simbolizar uma homenagem pessoal à uma sua ancestral, sinceramente me parece um grave sintoma de que estamos indo muito, muito mal...

Ah, para as mentes sebosas, que apenas entendem o enviesado de suas almas:
Nada tenho contra o processo de emancipação e autovalorizacao da mulher negra brasileira. Muito ao contrário. Como integrante de vários segmentos desqualificados, historicamente submetidos a intensos e cruéis processos de estigmatizacao, quero mais é que não existam tais processos - no Brasil como no mundo.

Mas daí a comungar com tais equívocos e segregacionismos, vai uma distância muito grande. Para mim, a apropriação de trajes e adereços da cultura da mulher negra brasileira por mulheres, travestis e viados, brancos e negros de todas as nuances, me parece, antes, uma grande prova de que as mulheres negras estão avançando em seu processo de auto-afirmacao e ressignificacao. Afinal, a gente apenas realiza a antrop ofagia ritual e simbólica quando o "inimigo" merece a nossa admiração. Se liguem, feministas afrobrasileiras.

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