domingo, 24 de fevereiro de 2013

Por que os perseguem tanto?

Uma juíza de vara criminal, lotada na comarca de Itaperuna, Noroeste fluminense, proferiu a aula inaugural, no último dia dezenove, do Seminário Teológico Batista local. 

Tentando desqualificar a corrente jurídico-doutrinária que faz uma interpretação analógico-extensiva do conceito de racismo, de modo a contemplar manifestações de discriminação em face de outros segmentos populacionais (p. ex., homossexuais, travestis, transexuais), a magistrada, que é membro da Igreja Batista Parque dos Ipês, segundo matéria publicada no portal da Rádio Itaperuna, teria afirmado  que, como não podem se reproduzir entre si, homossexuais não podem jamais ser considerados como  como "raça".

A juíza parece ter se esquecido de contextualizar o processo de construção dessa corrente doutrinária, bem como a sua finalidade.

Pelo que traz a matéria do sítio da rádio Itaperuna, esqueceu também de dizer a magistrada que biologicamente falando, "raça" não existe. O que existem são etnias. Núcleos populacionais humanos dotados de cultura e às vezes, alguns traços antropomórficos próprios.

Pela transcrição do conteúdo de sua aula constante no texto publicado pela Rádio Itaperuna, parece que a julgadora se filia à corrente de pensamento difundida pelo Pastor Silas Malafaia - cristão que, em seu ministério religioso, tem se dedicado, fundamentalmente, a impedir que uma determinada parcela da população brasileira obtenha do Estado, via Poder Legislativo, aquilo que a Constituição da República de 1988, no inciso XVI do artigo 5º determina expressamente:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

Pois, especialista em Direito como é, ocupando função pública judicante, não poderia jamais - caso não tivesse um projeto ideológico a lhe guiar as ações - sustentar semelhante temeridade.

Deixou de informar ou a matéria no portal da Rádio Itaperuna deixou de transmitir, as origens, entre nós, da afirmação jurisprudencial dessa corrente de entendimento jurídico.

Foi em 2003, através julgamento, pelo Pleno do STF, do Habeas Corpus que ficou conhecido como "Caso Ellwanger". Ali o STF enfrentando a questão, reconheceu que é a divisão dos seres humanos em "raças" que origina o "racismo", isto é, "a discriminação e o preconceito segregacionista". Portanto, afirmar que "judeus" não compõem uma "raça", não poderia servir de argumento para inviabilizar a punição de quem publique escritos reforçando a discriminação e o preconceito contra essa parcela da população humana. 

É que o objetivo da lei antidiscriminação (Lei nº 7.716/89, com redação dada pela Lei nº 8.081/90, a sua finalidade última, é precisamente EVITAR a prática de atos discriminatórios. E, quanto praticados, estabelecer-lhe a sanção devida, de modo a servir de exemplo, contribuindo, assim, para a mudança nas mentalidades, superando-se as renitentes visões discriminatórias e/ou preconceituosas. 

O objetivo último, portanto, é a garantia da preservação da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

Ora, se a Constituição da República, promulgada em 1988 (há vinte e quatro anos e quatro meses), DETERMINA de maneira EXPRESSA, que são vedadas distinções, de qualquer que seja a natureza, que resulte em discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (vida, dignidade, liberdade, igualdade, segurança);

se AFIRMA que a DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA e a CIDADANIA são FUNDAMENTOS DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, constituída como ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO;

se ESTABELECE entre os OBJETIVOS FUNDAMENTAIS da República Federativa do Brasil, 
"I - Construir uma sociedade livre, justa e solidária;
[...]
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."
É preciso reconhecer, assimilar, de uma vez por todas, que é absolutamente incompatível com o atual estágio civilizatório inscrito em nossa Constituição, a defesa da persistência de qualquer visão desqualificadora, estigmatizante, discriminatória, "quaisquer" que seja o motivo.

Assim, se a Constituição DETERMINOU que o Legislativo (o Congresso Nacional) deveria editar uma Lei Antidiscriminação que puna "qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" (inciso XLI do art. 5º), não se pode continuar a tentar sustentar como válida a tese de que uma parcela da humanidade residente no Brasil deva permanecer na qualidade de discriminada, alvo de agressões, humilhações e violências, em decorrência de uma determinada forma de interpretação de uma religião (não vou aqui entrar na discussão sobre o real espírito da fraternidade do Cristo Jesus).

E por que não se pode? Primeiro, porque o Brasil é um país republicano, democrático, subordinado à Constituição ("estado democrático de direito"). Na definição de País constante da Constituição, religião e assuntos da vida civil não se misturam.

Não importa se os cristãos são majoritários. Simplesmente o Estado brasileiro não pode se deixar guiar por concepções religiosas - qualquer que seja a religião.

Assim, no âmbito religioso, pode quem quiser entender que a homo ou travestilidade é "pecado". Está no seu direito, no âmbito da liberdade religiosa e da liberdade de convicção.

O que esses direitos não contemplam, porém, é que se tente transformar essa noção íntima, pessoal, peculiar, em norma jurídica ou estatal.

O fato de algumas interpretações da Bíblia sustentarem que homossexuais são pecadores, não gera a consequência de torná-los seres à margem do estado, da cidadania, do direito e da justiça.

O fato de determinadas interpretações religiosas insistirem que tais pessoas são pecadoras, não lhes dá o direito de pretender seguir impedindo que a Constituição (inciso XLI, art. 5º) seja cumprida.

E não se confunda direitos e garantias fundamentais com direito à liberdade de expressão. Ninguém tem o direito de seguir desqualificando, estigmatizando, segregando uma parcela da população.

Vejamos o que os Ministros do Supremo Tribunal Federal afirmaram sobre liberdade de expressão, naquele julgamento em que estabeleceram o conceito jurídico de raça: 
13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.  

14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo § 2º, primeira parte [§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte]). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 


E com relação à raça:
3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais.
4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.
5. [...] Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País.
[...]
8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma.
10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam.  
11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso
12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. (Veja mais aqui.)
Percebe-se, assim, que homossexuais, travestis e transexuais vem sendo, ao longo da história, objeto de práticas discriminatórias e desqualificatórias deliberadas, em total afronta  aos princípios que regem a nossa organização nacional, "baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social". 

Daí porque reivindicam a aplicação extensiva do conceito jurídico (outra vez: jurídico) de "raça", de modo a contemplar os processos de discriminação e desqualificação de que são alvo homossexuais, travestis e transexuais.

Reivindicam, igualmente, a inclusão das expressões "orientação sexual" e "identidade de gênero" no artígo primeiro (art. 1º) e vinte (art. 20) da Lei nº 7.716/89, assim como fez a Lei nº 9.459/97.

A Lei nº 7.716/89 originalmente apenas punia manifestações de preconceito decorrentes de "raça ou cor". 

No entanto, como vimos acima, a Constituição de 1988 DETERMINA que seja editada LEI PUNINDO QUALQUER DISCRIMINAÇÃO ATENTATÓRIA DOS DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS (inciso XVI do artigo 5º).

Daí então foi aprovada a Lei nº 9.459/97, que acrescentou (nos artigos 1º e 20) "religião e procedência nacional" à Lei nº 7.716/89.

Passaram, então, a estar a salvo de atitudes discriminatórias e preconceituosas, por exemplo, os nordestinos, os macumbeiros, os candomblecistas, os evangélicos etc.

No entanto, permaneceram de fora da proteção legal, os idosos, os deficientes físicos, as mulheres, os / as homossexuais, os / as travestis e os / as transexuais.

Com a finalidade de incluir essas categorias, cumprindo, assim, o que determina a Constituição (inc. XLI, art. 5º), a Senadora FÁTIMA CLEIDE (PT-RO) apresentou o seguinte projeto de Lei:
Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.” (NR)
Art. 8º Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares ou locais
semelhantes abertos ao público. 
Pena: reclusão de um a três anos. 
Parágrafo único: Incide nas mesmas penas aquele que impedir ou restringir a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público de pessoas com as características previstas no art. 1º desta Lei, sendo estas expressões e manifestações permitida às demais pessoas.” (NR) 
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. 
Pena: reclusão de um a três anos e multa.”
(NR) 
Art. 3º O § 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação: 
§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero:………………………………………………………”
(NR) 
Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. (Ver mais aqui).
Em resumo: Os e as homossexuais, travestis e transexuais desejam só e somente uma única e mesma coisa: - Que a Constituição da República Brasileira, promulgada em 1988, seja CUMPRIDA.

Ninguém pretende obrigar nenhuma religião a casar pessoas homossexuais. Deseja-se, sim, a efetividade universal do princípio constitucional da igualdade jurídica, assegurando-se às famílias homossexuais os mesmíssimos direitos que possuem as famílias heterossexuais, entre esses o direito ao casamento CIVIL.

Também ninguém deseja que religião alguma deixe de considerar a homossexualidade pecado, desde que isso não seja usado como justificativa para a prática de atos discriminatórios e estigmatizantes.

Repetindo: A população LGBTT apenas deseja as mesmas garantias contra discriminação que possuem aqueles que professam alguma religião, os negros e os judeus.

Deseja, também, que essas garantias sejam estendidas às mulheres, aos idosos e aos deficientes físicos, cumprindo, assim, finalmente, o que a Constituição determina, desde há vinte e quatro anos e quatro meses atrás, isto é, uma LEI ANTIDISCRIMINAÇÃO.

Confira você mesmo este texto desse projeto de lei, com o texto em vigor da Lei nº 7.716/89, aqui.

É pouco crível que, sendo bacharel em Direito e juíza criminal, aprovada por concurso público sabidamente rigoroso, a magistrada de Itaperuna desconheça todos esses fundamentos jurídicos que expus acima. 

Mas, lamentavelmente, parcela do povo católico e evangélico tem dedicado seu tempo a disseminar a idéia sabidamente errônea de que a população LGBT deseja obrigar religiões a realizar o casamento civil igualitário. E isso, sob o discurso de que não são homofóbicos, mas que repudiam "todo e qualquer tipo de violência praticada contra qualquer pessoa" (sic).




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Agradeço ao advogado criminalista Thiago Gomes Viana, a socialização do acórdão do STF.

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