sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Movimento trans crítica o sistema de gêneros ou como levar pito de um argentino e ficar contente

Semana passada a Rede Globo de televisão apresentou no Fantástico - a sua revista dominical - uma entrevista com a modelo Lea T.

Lea, ali, deixou claro ter consciência de que, mesmo operada (ela realizou a cirurgia de redesignação sexual há um ano no exterior), preservava em seu corpo características tidas como do sexo masculino ("ombros largos", mãos e pés "grandes"). - Só que o disse, em resposta à pergunta em si mesma risível (dizendo o mínimo) do "você se sente 100% mulher?". E, talvez não percebendo o tom capcioso da jornalista, iniciou a sua frase com "não...".

Mas ela disse outras coisas além. Ela ousou afirmar que não é um detalhe da anatomia ou uma cirurgia que determina, que condiciona a felicidade de alguém. Disse que a intervenção é um processo doloroso e, indagada, respondeu que não indicaria.

Os pontos centrais foram, para mim, destacar que a cirurgia é um processo mais para agradar a sociedade do que a própria pessoa transexual (pois a readequa à fixidez do modelo imposto);e  que o bem-estar individual não é determinado pela anatomia.

Eu assisti a entrevista. E percebi o movimento de "caça às bruxas" que se seguiu à sua transmissão. Combatiam as opiniões dissonantes ao paradigma vigente no interior do movimento trans.

Me recordei do quanto essa discussão que Lea incitava foi abortada no movimento homossexual da primeira geração (LACERDA apud SILVA, 1998, p. 36). Lembrei do quanto se estabeleceu uma espécie de dogma em torno da desesperada busca por um feminino ideal, um feminino determinado desde fora; da busca alucinada que tem levado mulheres, travestis e mulheres transexuais a resumir todo o projeto de suas existências nessa ânsia inatingível. Lembrei das deformidades, mutilações e mortes causadas pelo uso do silicone industrial e da ausência de críticas a essa corrida desesperada ao feminino idealizado e imposto.

- As vozes que, celeradas, se insurgem contra qualquer movimento crítico, tendem a sustentar que elas ameaçariam a (justa) conquista da cirurgia de transgenitalização pelo SUS. Assim, em nome da preservação de um programa social de governo, se estabelecia a censura sobre o debate.

 Para expressar minhas percepções, produzi o texto "Lea T põe o dedo nas feridas do sistema de gêneros".

Nesse texto, eu termino com duas interrogações categóricas:

Houve quem concordasse, houve quem divergisse. A crítica mais contundente - porque mal formulada, suprimindo parte da frase - veio do ativista intersex e pesquisador argentino Mauro Cabral. Mauro   escreveu:
"Me parece que la que atrasa 30 es Rita Colaço. No puedo creer que escriba que "...ninguém jamais ousou questionar a ordem simbólica que levou e leva milhares de transexuais pobres à morte pelo uso indevido de silicone industrial? Por que todos se limitaram e se limitam a reivindicar a cirurgia como a grande panacéia para todas e todos?" Me parece que esa afirmación revela la absoluta ignorancia de la autora respecto de la producción crítica trans. Lamentable."
Como minha crítica era específica aos movimentos LGBT e trans, e não a todas as pessoas do universo, refutei a contestação nos moldes em que formulada, solicitando me apresentasse suas fontes. Depois de mais argumentos inconsistentes (ora generalizantes, ora recorrendo à "autoridade fraternal", sustentando que por seus laços com o movimento brasileiro poderia afirmar que eu estava errada):
"Es como si por cada famosa que aparece en los medios reproduciendo estereotipos de género -y defendiendo esos estereotipos- a fuerza de dieta, botox, cirugía y cama solar acusáramos al feminismo de no haber hecho nunca nada por desmantelarlos."
 " Rita, conozco muy bien el movimiento GLTB en Brasil, con el que trabajo desde hace mas de 10 años, por eso sé, positivamente, que la apreciación "ninguém jamáis" es una profunda injusticia. Hace unos días la periodista feminista Suzanne Moore se despachó contra las mujeres que reproducen estereotipos de género acusándolas de actuar como "transexuales brasileñas" (y esta fue una de las respuestas que recibió, por ejemplo: http://www.divamag.co.uk/category/comment/an-open-letter-to-suzanne-moore.aspx, entre muchas otras). En algún momento las feministas cis tendrán mirar de frente sus prejuicios cisexistas sobre nosotr*s, y desmantelarlos. Y, como dije antes, usar el ejemplo de Lea T para decir que en Brasil nadie ha dicho nunca nada en 30 años es como usar de ejemplo a Pamela Anderson para decir que el feminismo norteamericano nunca debatió los estereotipos de género."
Reiterei minha solicitação por dados contretos e para que não continuasse a misturar feministas, mulheres cis e outras tangentes:
Luz enfin
Peço que me apresente fontes, não vínculos de amizades. Me apresente o registro de qual foi o seminário, congresso etc. no qual / quais foi / foram discutido/s a dimensão da violência de gênero na utilização massiva do silicone industrial, beleza! Aí eu retiro o que afirmo satisfeita.
 Eis que finalmente, Mauro Cabral traz consistência à sua crítica: Vozes dissidentes dentro do movimento trans, como o próprio Xande (Alexandre Peixe dos santos) reconhece, mas que fazem a diferença:
Mauro, verdadeiramente, me fez sentir muita alegria. - Alegria! Sim. Jamais me alegrei tanto em reconhecer que errei, que proferi generalizações que não se sustentam! 

Aline vai no mesmo sentido daquilo que Lea T tentou comunicar em sua entrevista para o Fantástico (para mim ela comunicou!):

Xande (A Patologização da identidade de gênero: Debatendo as concepções e as políticas públicas), Aline Freitas (traduzindo "Eu não sou minha cirurgia" e no autoral "Mulheres trans e o movimento feminista") e Janaína Lima (a quem ouvi proferi uma essencial crítica ao sistema de gêneros em Brasília, por ocasião da I Conferência Nacional para Políticas LGBT, no ano de 2008), são vozes que, junto com Lea T, ousam contestar as vozes da maioria - inclusive no interior do próprio segmento. 

Não cuido aqui de endossar a integralidade desses textos - e nem é esse o caso. Apenas dizer: 

- Mauro Cabral, você tem toda razão: 

- Eu errei; fiz uma generalização que não guarda relação - hoje - com a realidade no interior do movimento trans.
Me congratulo com as e os transexuais brasileiros que já se encontram a produzir esses questionamentos.

Um comentário:

O VIADO E A TRANSGRESSÃO POÉTICA disse...

Oi, Rita!
Quero apenas fazer uma colocação; Na questão do silicone industrial, todas as vezes que ouvi algo dentro do Movimento LGBT, mesmo vindo de quem se considera "lider", foi no sentido de apenas condenar e condenar, boquiabertos, quem aplica em si e a pessoa que faz o procedimento, que o MLGBT chama, pejorativamente de "bombadeiras" e , como um juiz, apenas condena, sem oferecer outras opções.Existe ambulatório para trans e travestis em todo o Brasil? Onde? Que eu conheça, apenas o Sampa e o de Campinas... Eu nem me envolvi nessa discussão, uma por que acho que, sabendo dos riscos, o corpo nos pertence e cada um ou uma faz com o seu o que quiser, e, depois, por que acho que só condenar e criminalizar as "bombadeiras" não ajudaria em nada.
Depois, toda a vez em que vi, dentro do Facebook e nos grupos de lá que eu participava, alguma discussão envolvendo a transexualidade, percebia que não havia e nunca haverá um discurso único das próprias pessoas trans e nem mesmo a despatologização é consenso no meio.
O que eu gostaria é de ver mais e mais trans e travestis assumindo a palavra e suas demandas e lutas e não líderes do MLGBT falando em nome delas / deles... o mesmo ocorre com a bissexualidade, vejo não bissexuais falando por que as pessoas bi não se encontram - ao menos em número representativo - dentro do MLGBT. Será que eu, como cis e não trans, posso ou devo falar por pessoas trans?
Teu artigo de hoje, como sempre, ilumina um pouco mais esse caminho.
Beijo,
Ricardo Aguieiras
aguieiras2002@yahoo.com.br