terça-feira, 26 de junho de 2012

Posição da ABGLT e do Constitucionalista que impetrou o Mdo Injunção

ABGLT vai ao STF com Mandado de Injunção que visa o reconhecimento do dever constitucional do Congresso Nacional criminalizar a homofobia e a transfobia (mandado de injunção nº 4733)

http://www.abglt.org.br/port/basecoluna.php?cod=228 

A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) é uma entidade de abrangência nacional, fundada em 1995, que atualmente congrega 257 organizações congêneres e tem como objetivo a defesa e promoção da cidadania desses segmentos da população. A ABGLT também é atuante internacionalmente e tem status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas. A missão da ABGLT é promover ações em prol da cidadania e os direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), contribuindo para a construção de uma sociedade democrática, na qual nenhuma pessoa seja submetida a quaisquer formas de discriminação, coerção e violência, em razão de suas orientações sexuais e identidades de gênero. 

A ABGLT propôs mandado de injunção perante o Supremo Tribunal Federal, no qual pleiteia o reconhecimento do dever constitucional do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia e a transfobia. 

Passamos, assim, a explicar os motivos que justificaram a propositura da presente ação – sendo que todas as explicações técnico-jurídicas sobre as teses que a fundamentam e sobre a necessidade da criminalização aqui pretendida são explicadas pelo advogado constitucionalista Paulo Iotti, que assina a ação em nome da ABGLT, em artigo constante do seguinte link: (que traz, no seu segundo parágrafo, link que leva à íntegra da petição inicial – e quem pretender nos criticar tem o dever ético de, no mínimo, ler a íntegra da ação para entender suas teses). 

A violência e a discriminação contra pessoas LGBT em geral está aumentando absurdamente ano após ano. Os relatórios anuais do GGB – Grupo Gay da Bahia mostram que o índice de assassinatos cometidos por homofobia (crimes de ódio homofóbico) está em linha ascendente. A criminalização da homofobia e da transfobia, assim, mostra-se absolutamente necessária.

Contudo, o Congresso Nacional está assolado por uma bancada que, ao colocar suas convicções religiosas-fundamentalistas acima da Constituição (que consagra um Estado Laico, que não pode ser influenciado por motivações religiosas), opõe-se ferozmente tanto ao reconhecimento de direitos civis básicos à população LGBT quanto à criminalização da homofobia e da transfobia. Sequer reconhecer direitos previdenciários ou a entidade familiar formada por casais homoafetivos, o que é uma decorrência lógica da histórica decisão do STF de 05 de Maio de 2011 (ADPF 132 e ADI 4277), o Congresso Nacional tem se mostrado propenso a fazer – ao contrário, há projetos que pretendem “derrubar” ganhos conseguidos na via judicial... 

Assim, essa situação de elevadíssima violência, ofensas e discriminações contra pessoas LGBT, que Paulo Iotti chama (parafraseando Hannah Arendt) de banalidade do mal homofóbico, demonstra que temos direitos fundamentais das pessoas LGBT já consagrados na Constituição e que demandam proteção pelo Supremo Tribunal Federal. Os direitos fundamentais à livre orientação sexual e à livre identidade de gênero, bem como o direito fundamental à segurança (art. 5º, caput) e à tolerância (art. 3º, inc. IV) da população LGBT estão inviabilizados nos dias de hoje, já que as pessoas LGBT estão com medo de serem reconhecidas como tais por medo de serem agredidas, ofendidas e/ou discriminadas por sua mera orientação sexual ou identidade de gênero (pessoas LGBT têm medo de andarem na Avenida Paulista, a avenida mais cosmopolita da mais cosmopolita de nossas capitais). Aliás, até mesmo heterossexuais estão sofrendo os efeitos nefastos da homofobia – basta lembrar do caso de pai e filho que foram agredidos no ano passado e o pai perdeu parte da orelha porque foram confundidos com um casal homoafetivo pelo simples fato de estarem abraçados... esse é o nível absurdo a que chega a homofobia hoje: basta estar abraçado com outro homem que isto é visto por homofóbicos como algo “inadmissível” e “passível” de agressões...

Por outro lado, como explicado na ação com base na lição de Luiz Carlos dos Santos Gonçalves (atual relator da Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto para o novo Código Penal), a criminalização de condutas, quando constitucionalmente obrigatória, torna-se pressuposto da cidadania, e o dispositivo constitucional relativo ao mandado de injunção diz que ele será concedido quando a ausência de norma regulamentadora (no caso, da punição criminal à homofobia e à transfobia) torne inviável o exercício de direitos ou liberdades constitucionais ou, ainda, de pressupostos inerentes à cidadania. Logo, plenamente cabível o mandado de injunção.

Como dito, o artigo jurídico de Paulo Iotti traz a explicação técnico-jurídica sobre os fundamentos da ação – que englobam desde o cabimento do mandado de injunção para criminalização de condutas com base no texto constitucional, a legitimidade ativa da ABGLT, as ordens constitucionais de criminalizar condutas que obrigam o Congresso Nacional a criminalizar de forma específica a homofobia e a transfobia e os pedidos da ação (sua criminalização como espécies do gênero racismo, entendido pelo STF como toda ideologia que pregue a inferioridade de um grupo relativamente a outro, como elas fazem com pessoas LGBT relativamente a heterossexuais que se identificam com seu sexo biológico, ou no mínimo como discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais; declaração de mora inconstitucional do Congresso em efetivar tal criminalização – que é o reconhecimento de que ele está atrasado, pois já deveria tê-la efetivado; fixação de prazo razoável para o Congresso aprovar a lei de criminalização da homofobia e da transfobia; exercício de função legislativa atípica pelo STF caso o Congresso não cumpra a decisão do Tribunal como ele fez quando regulamentou a greve dos servidores públicos civis (MI 670, 708, 712) ou a aposentadoria especial de pessoas com deficiência (MI 721); e, ainda, reconhecimento da responsabilidade civil do Estado Brasileiro em indenizar vítimas de homofobia e transfobia enquanto não se efetiva tal criminalização). Assim, remetemos o leitor ao link acima citado para entender a síntese das teses que justificam a ação e, ainda, para ter acesso ao link que leva à íntegra da petição inicial.

Com essa ação, pretendemos primordialmente o reconhecimento, pelo STF, de que o Congresso Nacional tem o dever constitucional de criminalizar a homofobia e a transfobia de forma específica, no sentido de que da mesma forma que as criminalizações genéricas do Código Penal de 1940 não são suficientes para coibir o racismo contra negros, não o são para coibir o racismo homofóbico e transfóbico inclusive em razão de Resoluções Internacionais da ONU e da OEA, que vêm exigindo medidas específicas para proteção dos LGBT. Ou seja, a ABGLT espera que o Supremo Tribunal Federal reconheça o dever constitucional do Congresso Nacional em criminalizar de forma específica a homofobia e a transfobia. Se o STF julgar o mérito da ação, entendemos que a procedência desse pedido é inquestionável. Embora também acreditemos na sua procedência, reconhecemos que os demais pedidos provavelmente gerarão polêmica na comunidade jurídica, mas este primeiro nos parece inquestionavelmente procedente.

É importante destacar que a ABGLT não considera que o STF seja a panaceia para todos os males. Acreditamos nos fundamentos constitucionais apresentados por Paulo Iotti na referida ação e, portanto, acreditamos que a nossa Constituição Cidadã de 1988 demanda pela proteção penal das cidadãs e dos cidadãos LGBT, já que a mesma proíbe a proteção deficiente de cidadãs e cidadãos por força do princípio da proporcionalidade, que é notório entre os juristas – logo, acreditamos que a Constituição exige uma proteção eficiente também da população LGBT, o que demanda pela punição da homofobia e da transfobia pelo Direito Penal na medida em que as leis administrativas estaduais e municipais hoje existentes não têm se mostrado suficientes para proteger as pessoas LGBT no Brasil mediante as penas (administrativas) que impõem a tais condutas (como advertências, multas, suspensões e cassações de licenças empresariais de funcionamento). Assim, entendemos que a própria ideologia do Direito Penal Mínimo justifica a criminalização específica da homofobia e da transfobia, pois temos aqui o que ela chama de bens jurídicos relevantes (os citados direitos fundamentais à livre orientação sexual, livre identidade de gênero, segurança e tolerância) e a ineficácia dos demais ramos do Direito para protegê-los.

Assim, a ABGLT tem a certeza de que está atuando a favor da democracia e da cidadania em geral com esta demanda, pois, como se sabe, não se pode dizer que o Estado respeita os direitos humanos enquanto uma pessoa ainda tiver seus direitos humanos violados, como ainda lamentavelmente ocorre com a população LGBT na atualidade. 

Toni Reis (presidencia@abglt.org.br; celulares: 41 9602 8906 / 61 8181 2196), presidente da ABGLT, e Carlos Magno, Secretário de Comunicação da ABGLT (31 8817 1170) ficam à disposição para maiores esclarecimentos sobre os aspectos políticos da ação – e Paulo Iotti, advogado que a elaborou e assinou, fica igualmente à disposição para maiores esclarecimentos sobre os aspectos jurídicos da mesma (pauloriv71@gadvs.com.br 

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Esclarecimentos do advogado Paulo Iotti:


A ABGLT ingressou com mandado de injunção visando a criminalização específica da homofobia e da transfobia – trata-se do MI n.º 4733, no qual consto como advogado signatário da ação. No presente artigo, apresento um resumo dos fundamentos jurídicos da ação (que possui 88 páginas e cuja íntegra consta de link do segundo parágrafo deste escrito) e algumas explicações acerca dos mesmos e dos objetivos que eu e a ABGLT temos com tal iniciativa.

O mandado de injunção e o dever constitucional do Congresso Nacional de Criminalizar a homofobia e a transfobia. Fundamentos do mandado de injunção n.º 4733.


http://pauloriv71.wordpress.com/2012/06/26/mandado-de-injuncao-e-criminalizacao-de-condutas-o-mi-n-o-4733/
A ABGLT publicou nota informando que ingressou com mandado de injunção perante o Supremo Tribunal Federal pleiteando o reconhecimento do dever constitucional do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia e a transfobia. Como o advogado que assinou a ação em nome da ABGLT e em razão da polêmica que a ação certamente trará, decidi publicar este artigo explicitando os fundamentos jurídico-constitucionais que justificam desde o cabimento do mandado de injunção para criminalização de condutas quanto a procedência dos pedidos dele constantes, em especial o de declaração da mora inconstitucional do Congresso Nacional na referida criminalização.
Inicialmente, uma advertência e um pedido: a petição inicial possui oitenta e oito páginas, razão pela qual o presente artigo constitui apenas resume o que ali se expõe. Logo, a ética demanda que os críticos primeiro leiam a íntegra da ação para, somente após compreenderem integralmente suas razões, poderem tecer suas críticas. Como a íntegra da ação não se encontra (pelo menos até o momento) disponível no site do STF a quem não seja advogado(a) com procuração para atuar no caso, segue link com a íntegra da mesma, na cópia fornecida pelo Tribunal em seu site a quem atue, como advogado(a), no caso: https://skydrive.live.com/?sc=documents&cid=467b1ad1742ba27e#cid=467B1AD1742BA27E&id=467B1AD1742BA27E%21156&sc=documents

Inicialmente, analisemos o contexto social acerca da criminalização da homofobia e da transfobia.
Estamos vivendo em um contexto social de verdadeira banalidade do mal homofóbico, no qual homofóbicos chegam ao ponto de explodir uma bomba ao final da Parada LGBT de São Paulo, em um típico atentado terrorista de motivação homofóbica[1], no qual um padrasto mata filho de 14 anos por não aceitar sua orientação sexual[2], no qual temos uma pessoa LGBT morta a cada dia e meio por sua mera orientação sexual, consoante relatórios do Grupo Gay da Bahia[3], sendo que até o Departamento de Estado dos Estados Unidos reconhece a alta incidência da homofobia no Brasil com base nesses relatórios[4]; estamos vivendo em um país no qual temos recorde de pessoas pedindo asilo no exterior pela homofobia generalizada de nosso país[5], no qual pai e filho abraçados são agredidos por confundidos com um casal homoafetivo[6] (“não se pode nem abraçar o filho”, disse o pai que teve a orelha decepada no ataque…), no qual jovem é agredido na Avenida Paulista/SP com uma lampadada por ter sido presumido como homossexual[7], no qual casais homoafetivos são agredidos[8] e discriminados[9] em estabelecimentos comerciais pelo simples fato de manifestarem seu afeto da mesma forma que fazem casais heteroafetivos… enfim, vivemos um contexto social no qual temos crimes praticados por motivação homofóbica/transfóbica ocorrendo rotineiramente sem que o Estado Brasileiro tome medidas efetivas para combatê-los – medidas estas que, embora não se limitem, se iniciam pela criminalização específica da homofobia e da transfobia… A frase de um daqueles que pediu asilo no estrangeiro é peremptória: Não volto de jeito nenhum. Porque aí no Brasil eu serei pra sempre uma condição. Aqui, sou um ser humano– veja-se a quem ponto chegamos: um brasileiro homossexual dizer que não volta ao Brasil porque aqui não é tratado como ser humano por conta de sua homossexualidade Sobre o tema, Maria Berenice Dias bem afirmou que a não-criminalização da homofobia é a raiz de iniciativas como essa por parte de brasileiros residentes fora, pois “A homofobia pais é uma realidade social, e a ausência de uma legislação que a criminalize, por si só, já justifica esses pedidos de asilo”, pois o pedido de asilo “É medida necessária à medida em que se tem um número muito significativo de violência sem qualquer tipo de repressão. E acho até bom que esses asilos sejam concedidos, pois acabam até expondo o Brasil a um constrangimento – porque o Judiciário avança em termos de reconhecimento de direitos civis, mas na criminalização está difícil de avançar”[10]. Sobre o tema dos homicídios homofóbicos, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), único ente que mapeia os assassinatos cometidos por homofobia ante a inércia do Estado Brasileiro em fazê-lo apesar disto constar como dever estatal desde o Plano Nacional de Direitos Humanos n.º 2, de 2002, 99% desses homicídios têm relação com homofobia. Segundo o antropólogo [Luiz Mott], há também uma ‘homofobia cultural, que expulsa as travestis para a margem da sociedade, onde a violência é mais endêmica’ e uma ‘homofobia institucional, quando o governo não garante a segurança dos espaços frequentados pela comunidade LGBT’[11]; destaca, ainda, que, pelo número de assassinatos homofóbicos cometidos no primeiro trimestre deste ano, 2012 tende a bater novo (nefasto) recorde de assassinatos cometidos por motivação homofóbica[12]. Logo, absolutamente necessária específica da criminalização da homofobia e da transfobia na atualidade.

Contudo, a criminalização da homofobia e da transfobia é alvo de feroz oposição pautada em falácias argumentativas e não na realidade, como a de que o PLC n.º 122/06 visaria dar “privilégios” às pessoas LGBT. Ora, tanto não se quer “privilégio” nenhum que o projeto pede a equiparação da violência e da discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero àquelas cometidas em razão de cor, etnia, procedência nacional e religião já previstas na Lei de Racismo (Lei n.º 7.716/89) – logo, os religiosos que se opõem a isso é que estão querendo garantir “privilégios” a si (e negá-los a outros), pois se forem agredidos e/ou ofendidos por sua opção religiosa, a conduta configura crime de racismo, donde pessoas agredidas e/ou ofendidas por sua orientação sexual e/ou identidade de gênero (que sequer são “opções” da pessoa) devem ser protegidas (penalmente) da mesma forma. Por outro lado, ao se querer criminalizar condutas motivadas na “orientação sexual” e na “identidade de gênero” da vítima, heterossexuais também estarão protegidos, donde se eventualmente ocorrer a tal “heterofobia” tão alardeada (embora inexistente, já que não se tem notícia de agressões, ofensas e/ou discriminações generalizadas motivadas na heterossexualidade da pessoa), isso também configurará crime. Por fim, o projeto não afronta a liberdade de expressão porque ela não protege discursos de ódio, ofensas gratuitas e/ou incitações à violência, ao preconceito e/ou à discriminação – a liberdade é o direito de se fazer o que não prejudique terceiros, donde, como tais condutas prejudicam suas vítimas, não são protegidas pela liberdade de expressão. Considerações análogas já fez o STF quando disse que a liberdade de expressão não garante um “direito” ao racismo e ao antissemitismo (STF, HC n.º 82.424/RS). Afinal, liberdade de expressão não é liberdade de opressão[13] – o uso da liberdade de expressão para ofender o outro configura, no máximo, abuso deste direito, o que não está protegido pela Constituição.

Por outro lado, entendo que a Constituição obriga o Congresso Nacional a criminalizar a homofobia e a transfobia, na medida em que ela o obriga a criminalizar o racismo (logo, todas as formas de racismo) e a punir discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, incs. XLI e XLII, da CF/88). Considerando que o STF afirmou que racismo é toda ideologia que pregue a inferioridade de um grupo relativamente a outro, independentemente de questões biológicas (HC 82.424/RS), tem-se que a homofobia e a transfobia são espécies do gênero racismo, já que a homofobia e a transfobia são posturas heterossexistas que tomam pessoas LGBT como supostamente “inferiores” a heterossexuais que se identificam com seu próprio gênero (heterossexismo é a ideologia que afirma ser a heterossexualidade a única sexualidade “aceitável” e/ou superior às demais orientações sexuais e à identidade de gênero não-coincidente com o sexo biológico da pessoa). Por outro lado, ainda que assim não se entenda, é inegável que a homofobia e a transfobia são discriminações atentatórias às liberdades fundamentais da livre orientação sexual e da livre identidade de gênero – e a punição precisa ser criminal, já que leis estaduais e municipais que preveem punições administrativas a atos homofóbicos e transfóbicos têm se mostrado insuficientes a coibi-las – e o mesmo se diga das previsões genéricas do Código Penal de 1940 (dizer que o Código Penal seria “suficiente” para coibir a homofobia e a transfobia é o mesmo que dizer que ele seria “suficiente” para coibir o racismo em geral, o que é igualmente absurdo – crimes de ódio devem ser punidos com maior gravidade que crimes que não sejam motivados no ódio/menosprezo pela sensação de medo/pavor/intranquilidade social que causam a suas vítimas). Logo, a proibição de proteção deficiente, inerente ao princípio constitucional da proporcionalidade, demanda pela criminalização da homofobia e da transfobia para que exista uma proteção eficiente às cidadãs e aos cidadãos LGBT de nosso país.

Sobre o tema do direito fundamental à segurança e respectivo dever estatal de a garantir, o Ministro Gilmar Mendes, na ADI n.º 3.112/DF, com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, afirmou que cabe ao Estado um “dever de proibição (Verbotspflicht), consistente no dever de proibir uma determinada conduta”, um ”dever de segurança (Sicherheitspflicht), que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas” e um dever de evitar riscos (Risikopflicht), que autoriza o Estado a atuar com o objetivo de evitar riscos para o cidadão em geral mediante adoção de medidas de proteção ou de prevenção especialmente em relação ao desenvolvimento técnico ou tecnológico”, razão pela qual entendemos que o Estado Brasileiro encontra-se em mora inconstitucional na efetivação do dever de proibição da homofobia e da transfobia, para se proibir expressamente mediante punição criminal as ofensas (individuais e coletivas), agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima, para assim efetivar o dever de garantia da segurança da população LGBT, para protegê-la das agressões, ameaças, ofensas e discriminações por elas sofridas na atualidade, e do dever de evitar riscos de homofobia e transfobia mediante adoção de medidas de proteção ou de prevenção para se combater as condutas homofóbicas e transfóbicas hoje nefastamente disseminadas na sociedade brasileira.

 Para desenvolvimentos sobre o conteúdo do princípio da proporcionalidade na acepção de proibição de proteção deficiente e sua incidência para caracterizar a proteção deficiente do Estado Brasileiro na proteção da população LGBT pela ausência de criminalização específica da homofobia e da transfobia e para corroborar o cabimento do mandado de injunção por força da noção de um garantismo penal positivo caracterizador do dever estatal de garantia da segurança da população em geral e, portanto, também da população LGBT, vide o item 3.1 da petição inicial, pp. 12-29.

Todavia, a insensibilidade do Congresso Nacional a tal compreensão forçou a ABGLT a procurar o Poder Judiciário. Desde sua origem os direitos e garantias fundamentais se destinam a proteger as minorias de arbitrariedades das maiorias. Nesse sentido, a abusiva inércia do Congresso tem gerado uma verdadeira opressão da minoria LGBT pela arbitrariedade da maioria parlamentar que se recusa a efetivar esta absolutamente necessária e obrigatória criminalização específica, por imposição constitucional e internacional – haja vista Resoluções recentes da ONU (16/06/2011) e OEA (de 25/05/2009) que demandam pela punição específica da homofobia e da transfobia pelos Estados nacionais –, o que justifica a ativação da jurisdição constitucional, em sua função contramajoritária, para demandar ao Congresso a criminalização específica das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das ameaças, agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima para garantir que não seja inviabilizada a cidadania e/ou não sejam inviabilizados os direitos fundamentais à segurança (proteção eficiente), à tolerância, à livre orientação sexual e à livre identidade de gênero.

Assim, por entender que há ordem constitucional de legislar criminalmente (mandado de criminalização) que obriga o Congresso Nacional a criminalizar a homofobia e a transfobia (art. 5º, inc. XLII ou, subdiariamente, inc. XLI, da CF/88), entendo que o Congresso encontra-se em mora inconstitucional, o que significa que ele já deveria ter aprovado lei efetivando tal criminalização e, como não o fez, encontra-se em mora (atraso), e tal mora é inconstitucional porque a Constituição o obriga a aprovar tal lei (não basta votar e rejeitar, é preciso aprovar e efetivamente criminalizar para que saia de sua mora). Tal é a conclusão lógica da teoria da Constituição Dirigente: como a Constituição obriga o Congresso a legislar, ele é obrigado a criar a legislação em questão, pela decisão sobre a conveniência, oportunidade e necessidade de tal legislação já ter sido tomada pelo Constituinte.

Aqui é preciso um parênteses. Desde o início informei à ABGLT que esse mandado de injunção provavelmente causará polêmica na comunidade jurídica até mesmo no que tange ao seu cabimento, pois sempre se pensa apenas em garantia de direitos e não em criminalização de condutas quando se pensa nesta ação constitucional. Contudo, teorias só são válidas se condizentes com o texto constitucional e o texto constitucional não diz que “só cabe mandado de injunção para regulamentação de direitos subjetivos” ou algo do gênero. Considerando que o artigo 5º, LXXI, da Constituição Federal afirma que “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”, temos como precisa a lição de Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, para quem O monopólio do emprego da força pelo Estado e a necessidade de atuação dos representantes populares para a conformação das leis penais, faz destas, quando constitucionalmente obrigatórias, uma prerrogativa da cidadania. Se há uma ordem constitucional cujo adimplemento é endereçado aos representantes do povo, o controle da omissão não pode ser negado à cidadania, no sentido amplo que se encontra no artigo 1º, inciso II, da Constituição”[14]. Por outro lado, os elevadíssimos índices de violência, discriminação e ofensas por motivo de homofobia e transfobia têm efetivamente inviabilizado os direitos fundamentais à livre orientação sexual e à livre identidade de gênero pelo medo constante das pessoas LGBT de serem agredidas, ofendidas, discriminadas e mortas na atualidade. Assim, tanto pela inviabilização de prerrogativas inerentes à cidadania quanto pela inviabilização de direitos e liberdades constitucionais, plenamente cabível o presente mandado de injunção, donde a noção intuitiva de que “só cabe mandado de injunção  para regulamentação de direitos subjetivos” é refutada pelo texto constitucional.

Ainda sobre o cabimento do mandado de injunção para criminalização de condutas quando essa criminalização seja necessária e constitucionalmente obrigatória, embora sem tratar do tema do mandado de injunção, entendo absolutamente pertinente a lição de Luciano Feldens[15] no sentido de que “Sob uma perspectiva filosófica, os deveres (estatais) de proteção revelam-se como consequência primária da atribuição ao Estado do monopólio da força em um ambiente social onde a autodefesa dos particulares é, em princípio, vedada; em contrapartida, o Estado, que reivindica esse poder, obriga-se a garantir a proteção contra agressões ou ameaças de terceiros. Nesse contexto, os deveres de proteção apresentam-se como a versão atual da contraprestação imputada ao – e assumida pelo – Estado em decorrência de um hipotético pacto de sujeição a que aderem os homens no precípuo desiderato de resguardarem sua liberdade e segurança no convívio social. A legitimidade do Estado, que se origina dessa adesão mútua, apenas se perfaz nessa troca. Na síntese de Alexy, a renúncia ao direito a uma efetiva autoproteção condicionada pela transição da situação pré-estatal à situação estatal apenas se justificaria racionalmente se o indivíduo em troca desta renúncia, obtivesse uma efetiva proteção do Estado”, posicionamento este que, a meu ver, reforça o cabimento do mandado de injunção para criminalização específica de condutas quando isto seja necessário que não sejam inviabilizados direitos fundamentais dos cidadãos e/ou prerrogativas da cidadania dos mesmos.

Como se vê, a afirmação apriorística segundo a qual “só cabe mandado de injunção para garantir direitos” significa, na linguagem de Heidegger e Gadamer, uma descabida entificação do ser do mandado de injunção apenas a algumas situações quando, de acordo com a correta interpretação do texto constitucional, ele abarca outras situações, como a criminalização de condutas (ao menos se adotada a corrente concretista geral do mandado de injunção, infra explicitada). Reitere-se, teorias só são válidas se condizentes com o texto constitucional – e o texto constitucional não consagra a tese segundo a qual “só cabe mandado de injunção para garantir direitos”. Essa é uma postura puramente ideológica não-abarcada pelo Direito Constitucional Positivo.

De qualquer forma, justamente por antecipar a polêmica relativamente ao cabimento do mandado de injunção, formulei pedido de cisão do julgamento, para que seja suscitada uma questão de ordem para que o Tribunal decida, inicialmente, se é cabível o mandado de injunção para criminalização de condutas para que, no caso de uma decisão favorável, decida posteriormente o mérito da ação.
Sobre as indagações que por vezes me fazem sobre o motivo de não se ingressar com uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão sobre o tema, que não terá as polêmicas sobre o cabimento e, portanto, certamente poderá ingressar no mérito do pedido de declaração de mora inconstitucional, a resposta é singela: a ABGLT não tem legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade. Caso algum legitimado tenha esse interesse, terá nosso total apoio. Contudo, obviamente entendo absolutamente cabível o mandado de injunção aqui explicitado.

Por outro lado, certamente surgirão críticas fundadas nas diferenças entre o mandado de injunção e a ADIn por Omissão. Contudo, embora parte da doutrina entenda que deveriam as ações diferirem na abrangência da decisão (individual no primeiro e geral e abstrata na segunda), entendo que: (i) ambos podem ter decisões com a mesma abrangência (geral e abstrata, pela corrente concretista geral do mandado de injunção), pois a necessidade de prova do interesse de agir para o primeiro configura uma diferença suficiente entre o MI e a ADInO (tese do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, consagrada pelo STF desde sempre em sua jurisprudência sobre o mandado de injunção, cf. MI n.º 107, o qual não foi superado neste ponto pelos MI n.º 670, 708 e 712, como mostra o voto do Ministro Gilmar Mendes, que explicita tal circunstância); (ii) essa compreensão configura uma exceção à regra segundo a qual o cidadão não teria legitimidade para controle abstrato de normas, até porque essa exceção tem uma abrangência bem restrita, a saber, a do controle abstrato da omissão inconstitucional, além da necessidade de prova do interesse de agir para que cidadãos e associações coletivas possam mover o mandado de injunção com tal fim; (iii) inexiste proibição constitucional de tal exegese, donde juridicamente possível tal compreensão jurídico-constitucional[16]; (iv) tem-se como irrazoável a exegese que permita a propositura de ações com o mesmo objeto quando há outra [exegese] que permita uma melhor racionalização dos trabalhos da Corte – pela afronta à isonomia oriunda de regulamentações distintas para pedidos idênticos sobre objetos idênticos formulados por pessoas diferentes, donde irrazoável a exegese que pretenda a existência de inúmeros julgamentos distintos para o mesmo fim - além do que, um mandado de injunção visando a criminalização específica de condutas não tem como gerar uma “norma de caso concreto” já que a criminalização supõe necessariamente previsões gerais e abstratas válidas para todo o país. Logo, plenamente viável a regulamentação geral e abstrata realizada (também) por mandado de injunção e (não só) por ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

Para a pormenorizada demonstração do cabimento do mandado de injunção aqui comentado por força do princípio da proporcionalidade na acepção de proibição de proteção deficiente, vide a petição inicial, item 3 (pp. 12-29).

Continuemos.
A legitimidade ativa da ABGLT é evidente, pois tendo o STF afirmado que se aplica ao mandado de injunção a legislação aplicável ao mandado de segurança enquanto não for aprovada lei regulamentando aquele (STF, MI n.º 107), a legitimidade da ABGLT para propor mandado de segurança coletivo lhe garante legitimidade para propor mandado de injunção coletivo. Até porque, sendo uma associação voltada à promoção de direitos da população LGBT e a combater a homofobia e a transfobia, totalmente caracterizada a pertinência temática exigida pelo STF para tanto, donde evidente o interesse de agir da ABGLT para tanto.

Assim, caracterizado o cabimento do mandado de injunção para criminalização de condutas de acordo com o texto constitucional (positivo) e caracterizada a legitimidade ativa da ABGLT, entendo por inquestionavelmente procedente o pedido de declaração da obrigação do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia e a transfobia, já que elas se enquadram no conceito jurídico-constitucional de racismo definido pelo STF no HC n.º 82.424/RS, donde caracterizada uma omissão inconstitucional parcial na criminalização de todas as formas de racismo prevista pelo art. 5º, inc. XLII, da CF/88 (especificamente quanto ao racismo homofóbico e transfóbico). Subsidiariamente, caso assim (equivocadamente) não se entenda, caracterizada então uma omissão inconstitucional parcial na criminalização de todas as formas de discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais prevista pelo art. 5º, XLI, da CF/88, na medida em que a homofobia e a transfobia inegavelmente se caracterizam como tal.

Aqui ingressamos nos pedidos efetivamente polêmicos, cabendo ressaltar que a não-concordância com eles não impede a concordância com a declaração da referida mora inconstitucional do Congresso Nacional na criminalização da homofobia e da transfobia. Afinal, antes de regulamentar a greve dos servidores públicos, o STF sempre afirmou que não poderia criar tal regulamentação por força da teoria da separação dos poderes (entendimento superado pelo citado julgamento dos MI n.º 670, 708 e 712), mas, apesar disso, declarava a mora inconstitucional do Congresso Nacional na elaboração da legislação respectiva (cf., v.g., MI n.º 20). Continuemos.

Caso acolha as razões supra e reconheça a mora inconstitucional do Congresso Nacional, o STF pode fixar um prazo razoável para que o Congresso, constituído em mora (cientificado de seu atraso), crie a lei em questão. Na ação foi sugerido o prazo de um ano porque o tema já é discutido há onze anos no Congresso Nacional (em 2001 foi proposto o PL 5003/01, aprovado na Câmara dos Deputados no final de 2006, quando chegou ao Senado como PLC 122/06), donde o tema já se encontra maduro o bastante para a definição da forma de efetivação de tal criminalização específica.

Por outro lado, deve-se pensar em o que acontecerá caso o Congresso Nacional, mesmo cientificado de sua mora inconstitucional, não criminalize a homofobia e a transfobia. Nesse sentido, a ação possui um pedido, embasado em forte doutrina, no sentido de que deve ser reconhecida a responsabilidade civil do Estado em indenizar as vítimas de homofobia e de transfobia enquanto não efetivar a respectiva criminalização. Da mesma forma que o Estado é civilmente responsável pelos prejuízos que leis declaradas inconstitucionais tragam aos cidadãos, também é civilmente responsável pelos prejuízos causados aos cidadãos por omissões inconstitucionais quando comprovado que estas causem prejuízos a estes. Assim, pelo elevado índice de violência, ofensas e discriminações contra pessoas LGBT por sua mera orientação sexual ou identidade de gênero, temos caracterizado o dano a tal população. A omissão dolosa/culposa do Estado em criminalizar a homofobia e a transfobia resta caracterizada pelo contexto social de banalidade do mal homofóbico, sendo que os demais ramos do Direito não têm se mostrado aptos a proteger de maneira eficiente os bens jurídico-constitucionais da livre orientação sexual, livre identidade de gênero, tolerância e segurança (que são, todos, direitos fundamentais), que mostram que mesmo a teoria do Direito Penal Mínimo demanda pela criminalização aqui pretendida. O nexo causal encontra-se no fato de que a omissão inconstitucional do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia e a transfobia tem gerado uma nefasta sensação a homofóbicos e transfóbicos em geral de que eles teriam um pseudo “direito” de ofender, agredir, ameaçar e discriminar pessoas LGBT unicamente por sua orientação sexual homoafetiva/biafetiva e/ou identidade de gênero transgênera, o que inclusive demonstra que o Estado Brasileiro encontra-se conivente com a homofobia e a transfobia que nefastamente assolam a sociedade, donde configurado também o nexo causal entre a omissão do Estado na criminalização específica de tais condutas e as ofensas, agressões, ameaças e/ou discriminações sofridas por tais pessoas em razão de sua orientação sexual e/ou de sua identidade de gênero. Ou seja, presentes inclusive todos os requisitos clássicos da configuração da responsabilidade civil do Estado pela não-criminalização específica das ofensas (individuais e coletivas), agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero da vítima. Para maiores desenvolvimentos sobre o tema, vide o item 6.2.2 da petição inicial (pp. 80-83).

Ademais, ainda sobre as consequências de uma eventual inação do Congresso Nacional mesmo após cientificado de sua mora inconstitucional, cabe perquirir acerca da possibilidade de outras consequências de tal inação (que não apenas a responsabilidade civil do Estado). Durante dezenove anos (1988 a 2007), o STF afirmou que não poderia suprir a omissão do Congresso quando servidores públicos civis pleiteavam, em mandado de injunção, que o tribunal regulamentasse o artigo 37, inciso VII, da Constituição, que, na visão do Tribunal, condiciona o exercício desse direito à aprovação de uma lei que o regulamente – afinal, o Tribunal classificar esse dispositivo constitucional como norma de eficácia limitada significa que ele sempre entendeu que o direito nele garantido só poderia ser exercido se uma lei viesse a regulamentar esse direito. São irrelevantes aqui as críticas da doutrina contemporânea à classificação de José Afonso da Silva e às bases teóricas que a sustentam: fato é que o STF a adota e a adotou na interpretação deste dispositivo constitucional. Portanto, nesses dezenove anos, o STF disse que a única coisa que poderia fazer era declarar essa inércia inconstitucional do Congresso (vide, por exemplo: STF, MI n.º 20). Contudo, em 2007, ele mudou de posição. Tendo constatado o desrespeito do Congresso Nacional às decisões que o cientificaram de seu dever de aprovar a lei regulamentadora da greve do serviço público, o STF efetivou a regulamentação da greve dos servidores públicos civis, adaptando a lei de greve do serviço privado às peculiaridades do serviço público (logo, não se trata de aplicação pura e simples da referida lei ao setor público como equivocadamente se difunde), o que o Tribunal fez (corretamente) sob o pressuposto de que as decisões da Corte são obrigatórias e que o seu não-cumprimento pelo Congresso Nacional justifica a regulamentação do tema pelo STF para que a Constituição não seja descumprida (STF, MI n.º 670, 708 e 712).

Outrossim, o Tribunal não garantiu o direito no caso concreto, ele elaborou normatização geral e abstrata aplicável a todo o ordenamento jurídico. A própria certidão de julgamento atesta isso ao afirmar que restaram “vencidos [...] os Senhores Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio, que limitavam a decisão à categoria representada pelo sindicato e estabeleciam condições específicas para o exercício das paralisações”. Logo, o STF aplicou a corrente concretista geral do mandado de injunção, que determina a elaboração de normatização geral e abstrata pela decisão de procedência da ação por força do princípio da isonomia (para garantir que todos na mesma situação tenham a mesma normatização a si reconhecida sem a necessidade de ingressarem com a ação) e não a corrente concretista individual, que defende a garantia do direito apenas ao caso concreto apresentado ao Tribunal. Essa a correta interpretação da decisão.

Continuemos.
Aqui ingressamos na tese mais polêmica deste mandado de injunção. Interpretar o artigo 37, inciso VII, da Constituição Federal como norma de eficácia limitada é o mesmo que dizer que ele significa que “não há exercício do direito de greve no serviço público sem lei anterior que o defina”, o que é rigorosamente o mesmo que dizer que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, como diz o artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, donde se o STF (corretamente) superou a exigência absoluta de lei formal aprovada pelo Parlamento para regulamentar a greve dos servidores públicos civis para dar cumprimento à respectiva ordem constitucional de legislar, também pode fazê-lo para criminalizar condutas quando isto seja necessário para garantir o cumprimento à respectiva ordem constitucional de criminalização quando o Congresso Nacional não cumpre esta imposição constitucional.

Imagino que muitos do mundo jurídico contemporâneo não aceitarão o que aqui se propôs: exercício de função legislativa atípica pelo STF para criminalização de condutas em sede de mandado de injunção nos casos de ordens constitucionais (expressas) de legislar. Debato o tema há aproximadamente três anos especificamente sobre os mandados de criminalização e reações puramente emocionais são praticamente tudo o que ouço como resposta. “Se o STF começar a tipificar crimes, estamos perdidos”, foi algo que ouvi certa vez; “você quer fechar o Congresso Nacional” [!??!], foi o que ouvi (de forma levemente parafraseada) em outra oportunidade (algo absurdo, pois obviamente sem menosprezar o fato de que o Parlamento é o local mais adequado para aprovação de normas gerais e abstratas, o fato é que se o Parlamento não cumpre seu dever constitucional de legislar, alguém deve cumpri-lo se ele se recusa a tanto apesar de cientificado pelo STF de sua mora inconstitucional…). Sobre minha afirmação, de que o STF superou a exigência de lei formal aprovada pelo Parlamento para regulamentar a greve dos servidores públicos civis de sorte a dar cumprimento à respectiva ordem constitucional de legislar, a resposta usual é “mas ele o fez para garantir direitos, não para criminalizar”, contudo, isso é irrelevante, pois exigência absoluta de lei é exigência absoluta de lei em qualquer caso, seja penal ou não-penal, e a interpretação do dispositivo sobre a greve dos servidores públicos civis como norma de eficácia limitada é o mesmo que dizer que há uma exigência absoluta de lei aprovada pelo Parlamento para que o referido direito constitucional possa ser exercido. Logo, a regulamentação geral e abstrata da greve dos servidores públicos civis feita pelo STF no julgamento dos MI n.º 670, 708 e 712 decorreu de exercício de atividade legislativa atípica pelo Tribunal (donde, a menos que se comece a dizer que algumas exigências absolutas de lei seriam “mais absolutas” que outras, descabe o argumento aqui criticado).
O exercício de função legislativa atípica pelo Tribunal ocorre mesmo por intermédio da corrente concretista individual. A procedência do mandado de injunção supõe necessariamente um dever constitucional de legislar descumprido pelo Parlamento e demanda, segundo as correntes concretistas (geral e/ou individual), a elaboração da norma pelo Tribunal – e tal elaboração normativa é uma atividade que a Constituição reservou ao Parlamento ao mesmo tempo em que previu, segundo as correntes concretistas, que a inércia inconstitucional do Parlamento em tal elaboração normativa supõe a criação das normas jurídicas respectivas pelo Tribunal competente por intermédio do mandado de injunção. Mesmo para a corrente concretista individual, são tais razões que justificam, por exemplo, a decisão do STF que decidiu que a mora do Congresso em legislar sobre a aposentadoria especial de servidores públicos (art. 40, §4º, da Constituição), dava ao Tribunal a prerrogativa não apenas declarar a omissão, mas também “viabilizar, no caso concreto, o exercício desse direito, afastando as consequências da inércia do legislador” (Informativo do STF n.º 477).

De qualquer forma, sei/imagino que essa tese trará muita polêmica. Eu, que a criei, sou o primeiro a isto reconhecer, embora (obviamente) esteja convicto de seu acerto. Como visto, entendo que é inegável que a homofobia e a transfobia configuram espécies do gênero racismo (ou, caso equivocadamente assim não se entenda, no mínimo configuram discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais), razão pela qual tenho profunda convicção de que, se o STF julgar o mérito do mandado de injunção, é absolutamente procedente o pedido de declaração de mora inconstitucional do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia, ou seja, é absolutamente procedente o pedido de cientificação do Congresso de que ele tem o dever constitucional de criminalizar a homofobia e a transfobia. Acredito na procedência dos demais pedidos, mas pela sua polêmica, cabe destacar a profunda convicção na procedência, no mérito, do pedido de declaração da mora inconstitucional do Congresso Nacional na criminalização específica da homofobia e da transfobia.

De qualquer forma, entendo que as mesmas razões que justificaram o exercício de função legislativa atípica pelo STF na regulamentação da greve dos servidores públicos civis justifica essa mesma postura do STF para a criminalização da homofobia e da transfobia caso o Congresso não a efetive após cientificado de sua mora inconstitucional para tanto. Não cabe tergiversar: o STF exerceu função legislativa naquela oportunidade (MI n.º 670, 708 e 712): o voto do Ministro Gilmar Mendes isto reconheceu ao dizer que o Tribunal, ao evoluir em sua jurisprudência pela saída da postura de meramente declarar a mora inconstitucional do Congresso Nacional, o fez proferindo decisões normativas, embora sem se comprometer a continuar exercendo uma função tipicamente legislativa (donde, a contrario sensu, reconhecendo que exercia função legislativa ou, no mínimo, normativa naquelas oportunidades), o Ministro Joaquim Barbosa foi peremptório sobre o tema ao dizer a frase “Já que decidimos legislar sobre o assunto, não seria melhor exaurir?”, o Ministro Sepúlveda Pertence também ao dizer que Legislar é muito difícil” e o Ministro Ayres Britto também ao dizer que a diferença entre o Congresso e o Supremo no ponto é que o Supremo não pode deixar de decidir [no contexto de decidir legislativamente, como mencionado pelos outros ministros]. Logo, dê-se o nome que se quiser, mas se reconheça que o STF exerceu atipicamente uma função legislativa ao regulamentar a greve dos servidores públicos civis: os ministros estavam plenamente cientes disto, como se vê pelos citados debates, constantes desta histórica decisão. Para uma ampla exposição da fundamentação da decisão do STF nesta decisão, vide o item 6.2.1 da petição inicial (pp. 59-70).

Sobre a objeção relativa à separação dos poderes, no sentido de que o Judiciário não poderia exercer essa função legislativa atípica, tem-se que, estando o núcleo essencial do princípio da separação dos poderes no sistema de freios e contrapesos, no sentido de um poder ter que controlar de maneira eficaz o outro para se coibir abusos, e considerando a experiência brasileira (o contexto brasileiro) das reiteradas intimações ao Congresso para sanar a omissão inconstitucional na regulamentação da greve dos servidores públicos civis sem que ele cumprisse sua obrigação constitucional de legislar, tem-se que a única forma efetiva de se controlar a persistente omissão inconstitucional do legislador é mediante a elaboração da normatização geral e abstrata respectiva pela Suprema Corte ou pelo órgão por ela designado por troca de sujeito.

Sobre o sistema de freios e contrapesos configurar o núcleo essencial da separação dos poderes, cabe lembrar que o próprio Montesquieu[17] já falava que “Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder”, frase esta que é a essência de sua compreensão acerca da necessidade de um sistema de separação dos poderes. “E mesmo Montesquieu não entendia esta separação como um fim em si mesma, mas como algo útil à sua concepção de separar para limitar”[18]. Como se vê, essa é a lógica do princípio da separação dos poderes, que vem desde Montesquieu no sentido do sistema de freios e contrapesos, no sentido de que um Poder deve controlar eficazmente o outro para que não haja abusos – como o abuso decorrente da reiterada inércia inconstitucional do Congresso Nacional em cumprir ordens constitucionais de legislar (abuso porque, se a normatização não for elaborada, a inércia inconstitucional estará inviabilizando esta ordem constitucional de legislar). Logo, a despeito da concepção concreta de separação de poderes de Montesquieu estar superada, pois o mesmo não aceitaria a diferenciação que hoje se faz entre norma e texto normativo no sentido daquela ser fruto da interpretação deste (pois, ao ver o juiz como mera boca que pronuncia as palavras da lei, ele certamente não aceitaria essa participação ativa do intérprete na criação da norma jurídica), pode-se afirmar que mesmo o seu conceito de separação dos poderes tem seu núcleo essencial no sistema de freios e contrapesos (sendo que a teoria tem sido melhor entendida como separação das funções do poder estatal, visto que o Poder estatal é uno, sendo divisíveis as funções do Poder – no caso, em função executiva, legislativa e judiciária. Mas se mantém aqui o uso de “separação dos poderes” por se tratar de expressão consagrada).

Sobre a questão da troca de sujeito para o cumprimento da Constituição, é precisa a lição de Walter Claudius Rothenburg[19], segundo a qual “A ideia principal aqui desenvolvida é simples: importa mais a finalidade de cumprir a Constituição, do que o sujeito (órgão) a quem as atribuições (competências) foram conferidas. Seria possível, portanto, admitir que outro sujeito, inicialmente não dotado de atribuição constitucional, implementasse o comando constitucional. O controle de constitucionalidade, realizado por órgão e procedimentos legítimos, poderia chegar a esse ponto: destituir um sujeito constitucionalmente previsto e autorizar outro a dar efetividade à Constituição. [...] Deste modo, por meio da fiscalização da omissão inconstitucional, pode-se atingir o âmago do problema, que se situa antes no objeto do controle (o desrespeito constitucional) do que no sujeito responsável. [...] Ora, o que importa fundamentalmente é suprir a lacuna inconstitucional, que constitui o objeto do controle. A preocupação passa então novamente pelo sujeito, só que para desinvestir o titular omisso e buscar outro capaz de colmatar a lacuna indevida, realizando a tarefa constitucionalmente imposta. Agora, no entanto, a questão do sujeito não aparece como principal (esta é a efetivação do direito constitucional), apenas como meio de se obter aquele resultado. A troca de sujeito apresenta-se, assim, como um momento da evolução dos vínculos constitucionais e como uma satisfação à exigência de implementação dos comandos constitucionais (particularmente os vazados em termos programáticos). O órgão encarregado do controle de constitucionalmente (principalmente o Judiciário) tem-se apresentado como o mais adequado para conduzir (e às vezes mesmo assumir) esse câmbio. Portanto, para dar cumprimento satisfatório aos fins estabelecidos para o Estado (e a sociedade), instaura-se uma polêmica concorrência de legitimidade entre, fundamentalmente, o legislador (tradicional encarregado de emprestar integração aos ditames constitucionais carentes de auto-executoriedade) e o órgão judiciário incumbido de realizar a fiscalização de constitucionalidade. [...] Já aqui se inicia o deslocamento de competências constitucionalmente estabelecidas, com a vantagem – marcante sob o aspecto prático – de que goza o Judiciário, de situar o controle do descumprimento constitucional em um campo de mais fácil e imediata aferição jurídica: a partir do instante em que o Judiciário interfere na determinação do sujeito responsável pelo desempenho de competências constitucionais, especifica-se uma ordem judicial, cujo desrespeito é de mais simples caracterização e punição”.

Embora a obra trabalhe fundamentalmente o tema das normas constitucionais garantidoras de direito usualmente tidas como programáticas/de eficácia limitada (sem tratar, portanto, dos mandados de criminalização), entende-se aqui que a fundamentação apresentada se aplica igualmente para as ordens constitucionais de criminalização de condutas, que também tiram a liberdade do legislador de decidir se irá ou não criar a lei criminal: ele deve cria-la, por força da supremacia constitucional de um constitucionalismo dirigente

Como visto, ao regulamentar a greve dos servidores públicos civis, o STF superou a exigência constitucional que entendeu existir no art. 37, inc. VII, da CF/88, qualificada inclusive como exigência de reserva legal absoluta (cf. STF, MI n.º 20, MI n.º 485, MI n.º 585 e MI n.º 631), por conta da reiterada inércia inconstitucional do legislador em cumprir seu dever constitucional de legislar a despeito de inúmeras vezes cientificado de sua mora inconstitucional e de seu dever de supri-la, para com isto evitar uma situação de menosprezo à supremacia constitucional por conta da recusa do Parlamento em cumprir seu dever constitucional de legislar.

Ora, se o Supremo Tribunal Federal superou a legalidade estrita parlamentar (exigência constitucional absoluta de lei formal aprovada pelo Parlamento) para regulamentar o exercício da greve no serviço público para que pudesse ser dado cumprimento à vontade constitucional de elaboração da legislação respectiva e assim garantir de maneira efetiva a supremacia constitucional de um constitucionalismo dirigente, tem-se que os mesmos fundamentos justificam que o Supremo Tribunal Federal supere a legalidade estrita parlamentar exigida constitucionalmente para criminalização de condutas de sorte a efetivar a regulamentação normativa necessária à criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima. Com efeito, afirmar que o art. 37, inc. VII, da CF/88 é uma norma de eficácia limitada é o mesmo que dizer que “não há exercício do direito de greve no serviço público sem lei anterior que o defina”, o que é rigorosamente o mesmo que dizer que “não há crime sem lei anterior que o defina”, como faz o art. 5º, inc. XXXIX, da CF/88, donde se o STF (corretamente) superou a exigência de lei formal para garantir o direito de greve do serviço público para dar cumprimento a ordem constitucional de legislar, pode também fazê-lo para superar a exigência de lei formal para efetivar a criminalização de condutas para dar cumprimento a ordem constitucional de legislar criminalmente. Afinal, as hipóteses normativas são rigorosamente as mesmas, por ambas exigirem atuação necessária do legislador, donde se o dirigismo constitucional oriundo das ordens constitucionais de legislar justifica a superação da exigência de atuação do Parlamento para elaborar a regulamentação respectiva em um caso, também o justifica no outro.

Como dito, sei que a tese aqui defendida certamente é polêmica, pois é óbvio que não ignoro que, a princípio, o art. 5º, inc. XXXIX, da CF/88, ao consagrar o princípio da legalidade estrita ou da reserva legal para fins criminais, pretendeu impor que as figuras típicas e suas sanções só possam ser criadas por leis do Parlamento e de acordo com o devido processo legal. Evidentemente não desconheço nem menosprezo a fundamentação acerca da alta relevância da exigência de legalidade estrita para fins de criminalização de condutas, como reação às criminalizações arbitrárias realizadas pelo Antigo Regime pré-revolução francesa mediante a imposição de que as leis sejam aprovadas pelo Parlamento, de sorte a garantir que o povo seja o responsável pela elaboração das normas gerais e abstratas que regerão a vida social e, especialmente, as leis restritivas de direitos, bem como visando a garantia de previsibilidade e ciência das pessoas sobre o que constitua crime (legalidade/taxatividade) – em suma, exigência de legalidade estrita nas criminalizações para se combater a ação arbitrária do Estado exemplificada pelos despotismos do absolutismo pré-revolução francesa e do nazi-fascimo. Contudo, em um Estado Democrático e Social de Direito dotado de supremacia constitucional sobre o Parlamento e pautado por um constitucionalismo dirigente que impõe ao Estado a obrigação de criar legislações criminais decorrentes de ordens constitucionais de legislar para efetivar o dever de proteção eficiente da população, a vontade constitucional é que a legislação seja efetivamente criada – este é o telos (a finalidade) inerente a tais ordens constitucionais de legislar, donde considerando que cabe ao Estado cumprir a Constituição, se o órgão estatal incumbido de elaborar a legislação (o Parlamento) se recusa a cumprir seu dever constitucional, o Estado deve efetivar a ordem constitucional, ainda que o faça por intermédio de outro de seus órgãos – no caso, o Judiciário, embora nada impeça que a Corte preferir determinar a troca de sujeito para o Executivo[20] elaborar a legislação faltante devido à inércia inconstitucional do Parlamento e, somente após eventual inércia também deste, atuar (a Corte) para elaborar a referida legislação. Afinal, no Estado Constitucional Democrático de Direito, o poder público está obrigado, normativo-constitucionalmente, à adoção de todas as medidas necessárias à concretização das imposições constitucionais. Essa conclusão leva a uma outra: no Estado Constitucional Democrático de Direito, a proteção jurídica há de ser global e eficiente, sem lacunas, o que pressupõe, nos casos de omissão inconstitucional, o reconhecimento de um direito público subjetivo ao cidadão de exigir uma atuação positiva do legislador (inclusive um direito à legislação), e dos demais poderes do Estado[21]. Essa lógica deve aplicar-se, igualmente, às ordens constitucionais de criminalização por isto ser necessário à concretização do dever estatal de proteção eficiente dos bens jurídicos que tais mandados de criminalização visam proteger e, inclusive, à noção de supremacia constitucional.

Afinal, se o Parlamento não cumpre seu dever constitucional de legislar, essa conduta afronta a norma constitucional caracterizadora do dever constitucional de legislar, criando uma tensão entre a ordem constitucional de legislar e a normatização constitucional que atribui a competência de elaborar a legislação ao Parlamento. Sobre o tema, entende-se aqui que essa tensão deve ser resolvida, por concordância prática, com a fixação de um prazo razoável para o Parlamento suprir sua omissão inconstitucional para que, ultrapassado este prazo sem o cumprimento de tal encargo, a Corte elaborar a legislação/normatização geral e abstrata respectiva. Afinal, na lição de Luiz Guilherme Marioni e Daniel Mitiero[22], O princípio da separação dos poderes confere ao Legislativo o poder de elaborar as leis, mas, evidentemente, não lhe dá o poder de inviabilizar a normatividade da Constituição. Aliás, tal poder certamente não é, nem poderia ser, absoluto ou imune. Bem por isso, nos casos em que a Constituição depende de lei ou tutela infraconstitucional, a inação do Legislativo, exatamente por não ser vista como discricionariedade ou manifestação de liberdade e sim violação de dever, deve ser suprida pelo Judiciário mediante a elaboração da norma que deixou de ser editada”, na medida em que o Legislativo não tem autorização para anular a Constituição, donde não há como compatibilizar o princípio da supremacia da Constituição com a ideia de que esta pode vir a falhar em virtude da não atuação legislativa, razão pela qual Quando o Legislativo não atua, um Tribunal Supremo ou uma Corte Constitucional tem inescondível dever de proteger a Constituição. Assim, se é a norma legislativa que falta para dar efetividade à Constituição, cabe ao Judiciário, sem qualquer dúvida, elaborá-la, evitando, assim, a desintegração da ordem constitucional”.

A lição seria perfeita se os autores não afirmassem que haveria casos em que haveria necessidade de atuação indispensável do legislador, da mesma forma que fazem Flavia Piovesan e Dirley da Cunha Junior, que entendem que o STF pode normatizar o tema em casos de reiterada mora inconstitucional do legislador (isso em ADIn por Omissão, por interpretação teleológica do dispositivo constitucional respectivo), salvo em determinadas hipóteses, como no Direito Penal. Contudo, discordo dessa ressalva. O Direito Penal não está imune à lógica das ordens constitucionais de legislar, donde se as ordens constitucionais de legislar justificam a elaboração de norma geral e abstrata pelo STF para suprir a reiterada mora inconstitucional do Congresso Nacional na elaboração de tal lei, essa lógica se aplica a todas as ordens constitucionais de legislar. O Direito Penal não está imune à lógica constitucional, logo, não está imune a esta lógica de concretização geral e abstrata da ordem constitucional de legislar pelo STF – e, sobre o que já me foi dito no sentido de que a noção de que “não há crime sem lei anterior que o defina” encontra-se na Constituição tornaria injusta a acusação de que os penalistas estariam a querer se blindar contra a Constituição, cabe responder de que esse princípio dogmático já existia no Direito Penal antes de sua constitucionalização, donde eles a ele se submetem por ser condizente com a dogmática penal clássica. O simples fato de existirem autores que absurdamente dizem que as ordens constitucionais de criminalizar não seriam de obrigatório cumprimento (!), mas apenas “autorizariam” a criminalização em tais hipóteses[23] mostra que há muitos criminalistas que não aceitam a supremacia constitucional quando ela não coincide com os dogmas penais (e falo isso sem menosprezar a nobreza da intenção destes autores de impedir o avanço desenfreado do Estado Penal para situações desnecessárias – mas essa nobre intenção não afasta o fato de que, data venia, menosprezam a supremacia constitucional quando ela não é condizente com seus dogmas penais). Para a refutação desta tese, vide a petição inicial, item 6.1.1 (pp. 55-59).

Ademais, cabe ressaltar que com a superação da legalidade estrita criminal proposta na ação não se visa, de forma alguma, diminuir ou menosprezar a limitação ao poder punitivo do Estado, que constitui a origem histórico-teleológica da imposição de legalidade estrita para fins criminais. De forma alguma. O fato é que é preciso distinguir situações em que esteja em jogo o cumprimento de ordens constitucionais de legislar descumpridas e situações nas quais não haja ordens constitucionais de legislar descumpridas. Quando temos uma ordem constitucional de legislar, o Parlamento tem o dever jurídico de legislar, não havendo “liberdade de conformação do legislador democrático” acerca da decisão de legislar ou não. Essa decisão já foi tomada pela Constituição – ele deve legislar, ele deve criar a lei, pois o juízo de conveniência,oportunidade e necessidade da lei já foi feito pelo Poder Constituinte, não podendo o Parlamento simplesmente descumprir essa ordem provinda da Constituição, pois o Parlamento encontra-se subordinado às determinações do Poder Constituinte…

Situação distinta temos quando não há ordem constitucional de legislar. Neste caso, há “liberdade de conformação do legislador democrático”, que pode decidir pela necessidade, conveniência e oportunidade na elaboração da legislação quando não tenhamos situação de omissão inconstitucional. Nesse sentido, inexistindo omissão inconstitucional do legislador no cumprimento de ordem constitucional de criminalizar, a exigência de legalidade estrita para fins criminais é absoluta e insuperável; por outro lado, existindo omissão inconstitucional do legislador no cumprimento de ordem constitucional de criminalizar, a exigência de legalidade estrita para fins criminais é relativa e superável no caso de o Parlamento insistir na omissão a despeito da declaração da mora inconstitucional pelo Tribunal Constitucional (no caso, pelo Supremo Tribunal Federal) e da superação do prazo razoável por ele fixado para a elaboração da legislação em questão. Eis o princípio limitador da tese: só é admissível a superação da exigência constitucional de legalidade estrita parlamentar quando existir ordem constitucional de legislar descumprida pelo legislador e quando o legislador permanecer inerte a despeito da declaração da inconstitucionalidade desta omissão pelo Tribunal Constitucional (no caso, o STF) e a despeito da superação do prazo razoável por ele fixado para a elaboração da legislação em questão. Pode-se limitar ainda mais a tese admitindo-se tal superação da legalidade estrita apenas para ordens constitucionais expressas de criminalização, para fazê-lo apenas em hipóteses em que haja certeza absoluta de que há tal dever constitucional de legislar, “certeza absoluta” esta decorrente de texto constitucional expresso, afastando-se polêmicas sobre a eventual existência de mandado de criminalização implícito no caso concreto em julgamento (embora, no caso da ação aqui comentada, tenhamos ordens constitucionais expressas – punição criminal do racismo ou, subsidiariamente, a discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais, respectivamente).

Para maiores desenvolvimentos sobre a superação da legalidade estrita criminal, vide a petição inicial, item 6.2.3 (72-80).

Assim, entendo plenamente justificada a presente ação em termos técnico-jurídicos. Passemos, agora, a algumas considerações finais. Mas, como dito no início, a ação possui oitenta e oito páginas e aqui as suas teses foram resumidas, donde quem pretender criticá-las deve, por ética e respeito, ler a íntegra da ação, na qual tais argumentos são desenvolvidos de maneira mais pormenorizada.

Passemos, assim, às considerações finais.
Com essa ação, o que se pretende primordialmente é o reconhecimento, pelo STF, de que o Congresso Nacional tem o dever constitucional de criminalizar a homofobia e a transfobia de forma específica, no sentido de que da mesma forma que as criminalizações genéricas do Código Penal de 1940 não são suficientes para coibir o racismo contra negros, não o são para coibir o racismo homofóbico e transfóbico – da mesma forma, considerando que o Código Penal não é suficiente para lidar com a violência contra as mulheres, há a Lei Maria da Penha, donde deve haver uma punição criminal específica à homofobia e à transfobia. Ou seja, o que eu e a ABGLT esperamos primordialmente é que o Supremo Tribunal Federal reconheça o dever constitucional do Congresso Nacional em criminalizar de forma específica a homofobia e a transfobia. Se o STF julgar o mérito da ação, entendemos que a procedência desse pedido é inquestionável. Embora também acreditemos na sua procedência, reconhecemos que os demais pedidos provavelmente gerarão polêmica na comunidade jurídica, mas este primeiro nos parece inquestionavelmente procedente.

É importante destacar que a ABGLT não considera que o STF é a panaceia para todos os males. Ela acredita nos fundamentos constitucionais trabalhados na ação e, portanto, acredita que a nossa Constituição Cidadã de 1988 demanda pela proteção penal das cidadãs e dos cidadãos LGBT, já que a mesma proíbe a proteção deficiente de cidadãs e cidadãos por força do notório princípio da proporcionalidade – logo, acreditamos que a Constituição exige uma proteção eficiente também da população LGBT, o que demanda pela punição da homofobia e da transfobia pelo Direito Penal na medida em que as leis administrativas estaduais e municipais hoje existentes não têm se mostrado suficientes para proteger as pessoas LGBT no Brasil mediante as penas (administrativas) que impõem a tais condutas (como advertências, multas, suspensões e cassações de licenças empresariais de funcionamento). Assim, entendemos que a própria ideologia do Direito Penal Mínimo justifica a criminalização específica da homofobia e da transfobia, pois temos aqui o que ela chama de bens jurídicos relevantes (os citados direitos fundamentais à livre orientação sexual, livre identidade de gênero, segurança e tolerância) e a ineficácia dos demais ramos do Direito para protegê-los, dada a ineficiência das leis estaduais e municipais de punições administrativas para tanto. Ora, se tal teoria diz que o Direito Penal só pode ser usado se falham os demais ramos do Direito na proteção dos bens jurídicos de alta relevância em questão, então, a contrario sensu, o Direito Penal deve ser utilizado em tal proteção por força da proibição de proteção deficiente decorrente do princípio da proporcionalidade.

Assim, a ABGLT tem a certeza de que está atuando a favor da democracia e da cidadania em geral com esta demanda, pois, como se sabe, não se pode dizer que o Estado respeita os direitos humanos enquanto uma pessoa ainda tiver seus direitos humanos violados, como ainda lamentavelmente ocorre com a população LGBT na atualidade. Eu, como autor e advogado, tenho a mesma convicção, sendo esta a razão pela qual concordou em patrocinar o presente mandado de injunção.


 *Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru. Especialista em Direito Constitucional pela PUC/SP. Bacharel em Direito pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie/SP. Advogado. Autor do Livro “Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos. Co-autor dos Livros “Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo” (organizado por Maria Berenice Dias) e “Minorias Sexuais. Direitos e Preconceitos” (organizado por Tereza Rodrigues Vieira). Membro do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual.
[3] Cf. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1071307-assassinatos-de-homossexuais-batem-recorde-em-2011-diz-entidade.shtml (acesso em 29/4/12). Para um histórico dos relatórios do GGB e da homofobia no Brasil, vide MOTT, Luiz. Raízes Persistentes da Homofobia no Brasil. In: Minorias Sexuais. Direitos e Preconceitos, 1ª Ed., São Paulo: Ed. Consulex, 2012, pp. 165-182 (em especial: pp. 172-173).
[4] Cf.: para dados de 2010: http://www.state.gov/j/drl/rls/hrrpt/2010/wha/154496.htm; para dados de 2008: http://ipsnews.net/news.asp?idnews=46596 (todos: acesso em 09/05/12).
[12] Idem.
[13] Frase constante de uma faixa levada à II Marcha Nacional contra a Homofobia, em Brasília, em 2012.
[14] GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a Proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988, 1ª Ed., Belo Horizonte: Editora Forum, 2007, pp. 299-300. G.n.
[15] FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal. A Constituição Penal, 2ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 87. G.n.
[16] Cf., v.g., STJ, MS n.º 14.050/DF, DJe de 21/05/2010; REsp n.º 782.601/RS, DJe de 15/12/2009; AR n.º 3.387/RS, DJe de 01/03/2010; MS n.º 13.17/DF, DJe de 29/06/2009; AgRg no REsp n.º 853.234/RJ, DJe de 19/12/2008; REsp n.º 820.475/RJ, DJe de 06/10/2008; AgRg no REsp n.º 863.073/RS, DJe de 24/03/2008; REsp n.º 797.387/MG, DJ de 16/08/2007, p. 289; MS n.º 11.513/DF, DJ de 07/05/2007, p. 274; RMS n.º 13.684/DF, DJ de 25/02/2002, p. 406; REsp n.º 220.983/SP, DJ de 25/09/2000, p. 72.
[17] MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, Tradução de Edson Bini, 1a Ed., São Paulo: Editora Edipro, 2004, p. 189.
[18] PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Mandado de Injunção, 1a Ed., São Paulo: Editora Atlas, 1999, p. 107.
[19] ROTHENBURG, Op. Cit., pp. 13 e 90-91. G.n.
[20] Claro que, aqui, não se aplicaria a vedação constitucional a medidas provisórias em matéria criminal, pois a troca de sujeito em questão visaria superar a inércia do Parlamento em cumprir a Constituição, donde, como cabe ao Estado Brasileiro cumprir a Constituição, se o Parlamento se recusa a fazê-lo, cabe ao Estado, de alguma forma, cumprir o quanto determinado pela Constituição, seja por intermédio do Poder Executivo ou do Poder Judiciário. Ainda que por interpretação restritiva, a vedação a MPs em matéria criminal não pode abranger casos de cumprimento de imposições constitucionais determinadas pela Suprema Corte, por troca de sujeito, pois a ratio da proibição de MPs em matéria criminal não deve incidir quando isto decorra do cumprimento de decisão da Suprema Corte para cumprir ordem constitucional de legislar, pois esta legislação é determinada pela Constituição. Ora, se o órgão ao qual a Constituição obrigou a criar a legislação se recusa a cumprir a Constituição, perfeitamente legítimo que a Suprema Corte, que tem o dever de extirpar a situação inconstitucional do mundo jurídico, por troca de sujeito, confira a si ou a outro órgão estatal o dever de cumprir a Constituição, pois o mais importante é cumprir a Constituição, não quem a cumpre, consoante a posição de Walter Claudius Rothenburg, exposta no corpo do texto.
[21] JÚNIOR, Dirley da Cunha. Controle de Constitucionalidade, 2ª Ed., Salvador: Ed. Podvim, 2007, p. 224. G.n.
[22] SARLET, Ingo Wolfgang. MARIONI, Luiz Guilherme. MITIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional, 1ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, pp. 1116-1118. G.n.
[23] Cf. PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo, 1ª Ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003, p. 148; BIANCHINI, Alice. MOLINA, Antonio García-Pablos. GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. Introdução e Princípios Fundamentais, 2ª Ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009, pp. 271-272; e COSTA, Leonardo Luiz de Figueiredo. Limites Constitucionais do Direito Penal, 1ª Ed., Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2007, pp. 45-46.
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